PSICOLOGIA DA REFAÇÃO
Aceitar com naturalidade uma recusa é sempre muito difícil: os pais que não nos dão atenção quando queremos, o amigo que não quer mais brincar, a namorada que não está sempre disponível para nossas vontades ou o filho que não nos escuta, são exemplos clássicos de “nãos” que temos que lidar ao longo de nossas vidas. Milhares de livros de autoajuda depois, cada um acaba encontrando uma maneira de sobreviver às negativas (ou a pelo menos algumas delas) sem se descabelar ou como se dizia antigamente, “pegar o limão e fazer uma limonada”.
Para nós, músicos, lidar com críticas também faz parte do aprendizado da vida profissional: o colega que tenta detonar seu solo, o produtor que insiste em pedir um timbre que o teclado que você levou para a gravação não é capaz de fazer, o chato que quer palpitar seu arranjo para depois levar o crédito só prá ele ou até mesmo o crítico de música que com duas frases mal humoradas detona seu trabalho, são apenas preparações para o grande momento que é a apresentação de um trabalho para o cliente, aquele sujeito que fez a encomenda, vai lhe pagar por ela e é em quem você está depositando suas mais sinceras esperanças de continuidade de trabalho. Esperanças... Na atividade artística profissional, nada é totalmente garantido.
Cada apresentação vai implicar numa decisão que pode ser a aprovação do que você trouxe para o jogo ou pedidos de modificações, o que é chamado no jargão desse mundo profissional de “refação”, uma palavra que por causar tantos sentimentos conflitantes fico até inibido para conferir no dicionário se ela existe mesmo como substantivo de “refazer”.
Achei: http://www.aulete.com.br/refa%C3%A7%C3%A3o
Antes da disseminação dos home estúdios, no milênio passado, a apresentação de uma trilha sonora para um cliente era um evento, pois o sujeito tinha que se deslocar até um estúdio de gravação onde estariam o compositor, os produtores, músicos e técnicos responsáveis pelo trabalho que “Sua Majestade, o Cliente” iria ouvir com atenção para dar o veredito que todos esperavam ou pedir que o filezinho com fritas apresentado viesse mais passado ou até com um molhinho à campanha que não havia sido pedido no início.
No cotidiano profissional pode não ser tão simples assim. É importante se preparar para a situação de quando você não corresponde às expectativas dos “patrões” e arranjar uma saída rápida sem ranger os dentes, mas no outro extremo, com o cuidado de não transformar sua vida num calvário em troca de ter o trabalho aprovado. Inclusive porque depois que o trabalho fôr a público, não haverá nota de rodapé explicando que você não concordava, mas foi voto vencido.
Entre os clássicos que já passei, poderia citar rapidamente o cliente que pediu para tirar “essa cornetinha maldita” de uma trilha que fiz para um comercial de moda se referindo ao trumpete com surdina do inesquecível Marcio Montarroyos, que felizmente gravou sua parte e foi embora antes do cliente chegar. Ou o diretor que reclamou dentro do estúdio do solo de trompa que havia me pedido por telefone, sem que eu o visse fazendo o gesto de tocar um imaginário trombone de vara no ar para revolta do trompista da Sinfônica contratado para a gravação.
Memorável também o diretor americano que comandando um piloto de seriado policial no Rio, confessou sua profunda aversão ao samba e à bossa nova, mas acabou adorando o funk favela, que ele identificou com Miami Bass, em voga nos anos 80 e que acabou vestindo sonoramente a salada mista cultural que era o filme. Da relação com esse diretor, guardei uma possibilidade de saída para essa situação de impasse: depois de sucessivas recusas às trilhas que o produtor brasileiro havia me pedido para preprarar sem saber da ojeriza do nosso homenzinho aos ícones de nossa música no estrangeiro, joguei duro com o yankee e falei: “sou capaz de fazer tudo o que você quiser em termos de trilha sonora, mas preciso que você me explique o que quer e principalmente o que não quer”.
Procure convencer o cliente a ouvir a música que você fez para ele em condições condizentes com o carinho empenhado ao trabalho, tentando motivar o cidadão a ouvir a música especialmente composta para ele em um som de qualidade. Além disso no estúdio como você terá todas as possibilidades de manipulação ali na hora, ao vivo, aumentarão suas chances deaprovar sua criação sem concessôes que possam causar arrependimentos posteriores.
Se você conseguir trazer o cliente para o seu mundo musical, tudo fica muito mais fácil, as coisas se resolvem com muito mais objetividade e rapidez como na situação em que o diretor que se referia a “aquela música do Steely Dan” descobriucantarolando dentro do estúdio sentado na frente do meu piano, o refrão que tinha pensado e dado como referencia queera na verdade da música “What a fool believes”, do Doobie Brothers...
Como parte de sua formação para monge budista evite deixar transparecer alguma raiva ou decepção com uma recusa. Nunca responda impulsivamente a uma apreciação negativa a respeito de seu trabalho. Espere a bola baixar e pararesponder, tente entender qual é o pedido, o que não agradou e precisa ser modificado. Justificativas e discussões estéticas com clientes, são pura perda de tempo. Não se incomode diante de comentários irônicos e pejorativos a respeito do seu “pianinho”. Talvez “o dele” é que seja pequenininho...
Nunca é demais lembrar que a recusa à sua música pode não ter relação direta com a qualidade do que você apresentou e sim com outros problemas que estejam acontecendo em outras áreas desse mesmo trabalho, ou até na própria vida pessoal do seu interlocutor.
Não se esconda atrás de alguém que atenda o telefone para você ou responda a emails em seu nome. Embora isso pareça que vai aliviá-lo de críticas injustas, provavelmente só irá atrasar o processo porque se com a comunicação direta já acontecem ruídos e incompreensões, imagine com a participação de outros interlocutores! Num mundo ideal quem decide falaria com quem decide, mas o que predomina é o poder de fogo: quem pode mais, escolhe com quem fala e quem pode menos, às vezes tem que passar por quem pode menos e faz questão de aparecer.
Acredite sempre na sua capacidade de traduzir sonoramente os desejos do seu cliente e você estará no caminho certo para sair de uma recusa frustrante para uma relação profissional saudável e até bem humorada com o cliente.
Afinal, ele também pode ter o próprio trabalho recusado como um todo, apesar de sua música ter sido muito elogiada por ele mesmo e aí provavelmente você pode será convocado a refazer parte ou toda a sua criação. Uma boa trilha, por melhor que seja, não aprova um filme ruim. Essa é de uma entrevista do John Williams, vale a pena pensar nela!
Sim, leitor essa possibilidade existe e já aconteceu muito mais do que deveria: o vídeo/filme/episódio/corte foi recusado e terá que ser remontado e aí 11 entre 10 vezes você será acionado para algo entre ajustar a música aos novos tempos de imagem ou refazer toda a trilha, o que nem sempre é trivial e depende de dois ou três clicks de mouse.
As perguntas que você está se segurando para fazer: “mas quanto custa isso tudo?” “Quantas vezes a pessoa é obrigada a refazer sem cobrar outra vez”?
Questão muito complexa, meu chapa. Se eu responder que vai depender da sua vontade de assinar o trabalho e conquistar o cliente, acho que correrei o risco de perder meu leitor para um manual de vidência ou quiromancia, mas sei de profissionais que tentaram colocar num contrato o número máximo de vezes que aceitam refazer um trabalho sem acréscimo de preço e nunca mais ouviram falar nos clientes que os contrataram. Já fui convocado a refazer trabalhos em que compositores de mais ou menos nome não tiveram fôlega para a maratona de refações e foram substituídos embora sempre dirão que “saíram do trabalho”.
Talvez o melhor caminho aqui seja incorporar a prática onipresente do “work in progress”: nada é definitivo, é improvável a obra magna acima de qualquer suspeita que entrará no ar sem contestação.
No mundo real das trilhas sonoras, somos chamados para interpretar e transpor as ideias de quem quer contar uma história sob a forma áudio visual.
Dentro dessa realidade é possível ter seu estilo, seus prazeres musicais e ganhar uma vida, mas esteja preparado para as recusas porque elas acontecem mesmo e não podem ser o fim do mundo para você! Ninguém é artista sem ego, mas saber controlá-lo é fundamental para progredir, não criar fama de “mala” e expandir seu universo de parceiros profissionais.
Nada melhor para aprofundar a reflexão aqui proposta que ouvir os exemplos de peças que foram compostas para uma abertura de uma série de tv a cabo das quais apenas uma naturalmente foi ao ar.
https://soundcloud.com/fernandomoura59/abertura-far-away
https://soundcloud.com/fernandomoura59/abertura-03-orquestra
https://soundcloud.com/fernandomoura59/abertura-08-minueto-com-violao-solista
https://soundcloud.com/fernandomoura59/abertura-vs-09-violao-e-cordas
Deixe seu comentário!
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Envie seu comentário preenchendo os campos abaixo