Dois - Remaster com Rui Motta
Rui Motta - bateria / Fernando Moura - teclados
A primeira lembrança que tenho de Rui Motta foi de um teste que fiz para entrar nos Mutantes substituindo Tulio Mourão no final dos anos 70.
Um aluno meu de piano que era irmão de uma namorada do Lobão, conseguiu marcar uma audição em Copacabana e durante uma meia hora sem que nada me fosse perguntado apresentei o melhor que sabia na época, uma seleção do meu repertório de música erudita começando com invenções de Bach até peças da Prole do Bebê de Villa Lobos, tocadas com toda a energia e vigor dos meus 17 anos de então.
Além do sonho de poder tocar com o conjunto brasileiro que mais me identificava na época, achei que seria interessante para eles terem um pianista com formação erudita por estarem numa fase totalmente voltada para o progressivo, inclusive com a participação de Paul de Castro que além de baixo, tocava violino.
Mesmo depois desses anos todos, não sei quem ficou mais surpreso com aquela performance: se eles que não conseguiram ir além de um educado “muito obrigado” ou se eu que tinha sonhado tanto com aquele momento e não sabia se tinha me saído bem ou mal no teste que sonhava mudar a minha vida.
Poucos anos depois, o destino me fez ser escolhido pelo próprio Tulio para substituí-lo como tecladista na banda do Ednardo, que se preparava para uma tournée nacional começando no Rio de Janeiro e que tinha Rui como baterista.
Foi meu primeiro trabalho com viagens para fora do Rio e o Ednardo jura até hoje que eu andava com uma autorização do juizado de menores para tocar... não tenho tanta certeza, mas o ônibus alugado quebrou perto de Governador Valadares a caminho de Salvador com os músicos e técnicos e adivinhem quem foi a dupla designada para arranjar socorro para o veículo enguiçado na Rio Bahia?
Nossa primeira gig como duo...
Dividíamos os quartos de hotel e até da casa da família do empresário no Crato onde ficamos cerca de uma semana hospedados esperando a data do show de Fortaleza que seria a “salvação” para uma excursão que vinha sendo desastrosa financeiramente. O que aconteceu depois, pertence a outra história, mas a amizade ficou, ouvi dele a frase que sempre me guiou desde então (“músico tem que ter dignidade”) e passamos a fazer projetos musicais em parceria que se incrementou tempos depois quando Rui passou uma temporada morando em minha casa.
Usando o meu piano, se desenvolveu na escrita musical e compôs suas primeiras músicas, liberando uma criatividade que tinha pouco espaço nos Mutantes, que nessa época ou estavam hibernando ou em alguma formação secundária que não contava com a participação do Rui, que tinha como ocupação principal acompanhar artistas da MPB.
Paralelamente a esses trabalhos, tentamos projetos pessoais em diferentes formatos, mas o que vingava mesmo eram shows e gravações com os artistas que acompanhávamos (Zé Ramalho, Amelinha, Moraes Moreira) trabalhos em trilhas que eu começava a fazer e produzir com mais frequência e também jingles para uma produtora que por ser uma sociedade que incluía Sá e Guarabyra, levou Rui a ser membro da banda que os acompanhou durante muito tempo. Nem por isso deixamos de tocar juntos em meus shows instrumentais e discos como "Passeio Noturno” e “Cinema Tocado”, onde sua participação foi decisiva.
A segunda metade da década de 90 e a primeira dos anos 2000 nos levou a caminhos diversos, Rui se dedicando cada vez mais à sua escola de bateria e eu balançando entre o mundo das trilhas sonoras e trabalhos que me levavam ao Japão até 3 vezes por ano.
Por volta de 2009 começamos a nos encontrar e levantar um duo com composições originais e passamos a ensaiar no estúdio da escola de bateria com a regularidade que nossas agendas permitiam.
Não era fácil, os encontros eram geralmente no fim do dia, tínhamos que montar e desmontar os setups porque a sala de aula seria usada no dia seguinte, mas íamos construindo as músicas e experimentando juntos até que uma fatalidade aconteceu e perdi as programações das músicas que tinha feito em um longo tempo de trabalho. O único backup disponível, como ensina a lei de Murphy, não funcionou.
Foi um verdadeiro terremoto para o trabalho e a única solução era eu reprogramar tudo do zero novamente, música por música para que pudéssemos recuperar nossas ideias.
As músicas de “DOIS” são estruturadas a partir da interação entre programação (baixos, efeitos, pads, samplers) e a nossa performance ao vivo na bateria e nas partes de piano, solos e alguns efeitos interagindo com o computador.
É como se duas bandas tocassem simultaneamente, onde dois músicos tocam com o computador que faz a parte de acompanhamento ou reproduz o que foi manipulado sonoramente e está gravado como arquivo de áudio como coros, efeitos sonoros e atmosferas.
Faixa a faixa para mim:
África Mágica: na remasterização, resgatei a introdução de piano e pads que não constava do DVD. A composição do Rui não segue sequência harmônica e sim uma combinação de batidas de bateria absolutamente originais e riffs melódicos com timbres que evocam guitarras. Ao final, o solo de Mini Moog conduz a um final tipicamente progressivo com a bateria soando como uma orquestra de percussão.
Planetas: fraseado melódico na bateria dialoga com samplers de voz em uma atmosfera cósmica, mas pulsante. Riffs de clavinete e comentários de piano logo começam a se alternar sobre a pulsação exata da bateria e as linhas de baixo ostinato de Mini Moog. Sucessivos acordes jazzísticos dialogam com vocais sampleados e desembocam num surpreendente reggae com harmonia de blues em tom menor que dá a base para o solo de teclado. A preparação para o fim chega com um crescendo enérgico de bateria e piano que lembra e encerra a faixa no clima do Jardim das Delícias, composição que gravamos em 1985 para Passeio Noturno, meu primeiro disco solo.
Quintal das Âncoras: interessante notar como nossos estilos de composição são diferentes: Rui “orquestra” as batidas que cria e que lhe servem de ponto de partida e eu imagino sequencias de imagens que se sucedem, numa construção evidentemente influenciada pelas trilhas sonoras e também pelo progressivo. Mesmo assim, o trabalho tem um som com muita identidade. Nessa faixa, sinto a influência do Weather Report tanto nos timbres de teclado quanto na performance da bateria.
Mistérios do Pântano: uma característica brasileira mais aparente, sem ser óbvia. Diálogo do solo de órgão com o naipe de metais. Rui se alterna nos comentários e provê uma usina rítmica incansável que deságua numa “escola de samba progressiva” montada em cima de um riff de piano e que abre espaço para solo de Mini Moog. O solo se desenvolve até uma citação das Bachianas Brasileiras que corrobora o clima de brasilidade sem folclore que a faixa apresenta.
Mala Chinesa: música que gravamos pela primeira vez nos anos 80, mas que só nesse disco conseguimos dar a forma exata do arranjo. A estética segue as sequencias harmônicas e os requintes virtuosísticos do período, mas os anos passados acrescentaram outros elementos inesperados além da velocidade e extrema complexidade das batidas e dos solos de teclado. Um dueto inspirado no jazz rock evolui para um crescendo até a reapresentação da melodia pelo teclado e que evolui para um solo de tenho muito orgulho de ter gravado nesse disco.
Eletro Ritmo: composição do Rui e para mim, a mais avançada em termos de sonoridade e ousadia do disco. Não tem sequência de acordes nem melodia “intuitiva”. As partes melódicas vão se sobrepondo em diálogo e construção com a bateria e temperadas por timbres agressivos e “sujos” de teclados. Os riffs se sucedem surpreendendo o ouvinte a todo instante e as levadas de bateria são um show de originalidade e energia.
Afro Hop: não adianta negar que composição de tecladista geralmente vem a partir de uma sequência de acordes ou uma linha melódica que forma a base para a música se desenvolver. Há um diálogo muito interessante entre a base de bateria e teclados e um depoimento de uma senhora do interior do nordeste sobre a cultura. Sem pretensão, com humor e fazendo música com as palavras. Um solo de Rhodes para variar o timbre depois de tantos teclados e pianos e um final onde o diálogo com a bateria vai num crescendo que até me deu vontade de acrescentar um solo durante a remasterização, mas o tempo não volta e emoção não se reedita, preferimos deixar como foi gravado em 2009.
Voo de Balão: talvez minha faixa preferida do disco. A última a ser composta, tive a ideia depois de uma viagem à Turquia em 2008 onde de fato sobrevoei a Capadócia num voo de balão. Foi inesquecível o contraste com o que vi pelas ruas de Istambul, um lugar misterioso e instigante para o turista onde os sons, o clima, os cheiros, as cores, tudo é muito particular. Interessante como o Rui captou tão bem esses climas, interagiu com algumas percussões e coros que trouxe de lá e tivemos um momento de improviso jazzístico que só poderia ter sido acontecido inspirado pela bateria energética e precisa de Rui Motta.